31 de janeiro de 2014

Quando gosto, publico.

Encontrei este texto na bloga, e de resto, é do melhorzinho que li por estes dias de dux-es e banhos de imersão.
Ora vejam.

Em nome do povo

Interrompo a minha habitual existência no mundo do etéreo, onde a única coisa que me pode incomodar é um desastrado deslize melódico na ligação entre dois versos, para dizer o seguinte:
Em Portugal a culpa até pode morrer solteira mas vive a sua vida artificialmente inseminada de trigémeos, e parece-me que é precisamente pelo excesso de fecundidade que acaba por morrer, solteira, durante o parto.
A inquisição não foi obra do diabo mas dos homens e encontrou o seu terreno fértil numa certa forma de mentalidade que lhe sobreviveu.
Há em cada Português um juiz frustrado que não cursou direito nem passou pelas cadeiras do Centro de Estudos Judiciários e que, apesar de nunca ter sido nomeado, não se cansa de fazer julgamentos.
Para esse juiz, que julga sem processo, sem provas e sem regras, o veredicto natural é a condenação.
Esse juiz, que habita a oitava costela do português, não aprende nada com os seus próprios erros. Se aprendesse, retiraria algumas ilações de um célebre julgamento em que, ao mesmo tempo em que condenou os pais ingleses de uma criança desaparecida, conseguiu condenar as instituições que não a fizeram reaparecer. Mas não aprende, porque quando o acto de julgar encontra os seus fundamentos no prazer do sentenciar e não na missão da justiça, os erros não interessam para nada.
Vem isto a propósito de seis adultos que morreram afogados e de um sétimo que anda a ser a queimado vivo na fogueira da inquisição e que, até prova em contrário, o único crime que cometeu foi o saudável exercício do seu direito de se recusar a exibir a sua intimidade em frente das câmaras da televisão.
Para esse juiz, a equação é fácil. Onde há uma tragédia tem de haver um culpado. Ou não fosse o mundo, tendencialmente, um éden divino que apenas pela ação humana pode ser perturbado. Percebo o conforto da ideia. Afinal, enquanto a culpa for dos homens há esperança. O acaso e a natureza são forças indisciplináveis que gozam com as nossas leis e não temem a possibilidade de acabar os seus dias num estabelecimento prisional. Mandam as regras da cobardia que apenas se escolham inimigos ao alcance da nossa própria capacidade de aniquilação.
Também percebo as famílias das vítimas. À justiça do luto importa, antes de mais, absolver de toda a espécie de culpa própria aqueles que se foram.
O que não percebo é esse juiz condenador, que pelo mero prazer do sentenciar faz suas as vítimas dos outros e cria as próprias, sem nunca se questionar sobre os efeitos da sua atividade criminosa

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