25 de julho de 2014

SE O PRESENTE FOSSE FÁCIL...

Capítulo I

Sentada no sofá, Branca aproveitava o mau tempo que se abatera sobre a cidade.
Entretida em leituras filosóficas, dessas que falam sobre os prazeres da vida, sentiu de súbito uma dor no braço esquerdo, que apareceu inesperada e pungente.
A dor, ao início breve e depois difusa, parecia ter ali chegado depois de uma forte pancada. Assustou-se, e tentando perceber do que se tratava, esticou o braço para a frente fazendo de seguida um gesto maquinal de encontro ao peito. O braço pesava-lhe uma tonelada, como se tivesse sido alvo de grande esforço.
A leve sensação de fome que vinha adiando com um chá, desaparecera, e tomando agora consciência do seu estômago, enfrentou uma estranha náusea.
Calmamente e à vez, pôs os pés no chão, e como se tudo não passasse de um sonho, endireitou as costas e respirou fundo. No entanto, o braço pesado e a mão dormente despertaram-na das suposições que lhe bailavam entretanto na cabeça, e os motivos daquela dor repentina no braço esquerdo agigantaram-se no pensamento como se uma pequena onda se transformasse de subito, numa grande vaga de medo.
Sugestionada ou não, Branca pressentiu um mal-estar, e apesar de estar sozinha na sala percebeu que não estava só. Alguma coisa acontecera e viera juntar-se a ela.
Coração.
Calculou brevemente a sua condição. Magra, de hábitos costumeiros, sem grande alarido desportivo, não seria o melhor exemplar para atrair um enfarte.
A idade também não abonava a favor do intruso, se é que era quem pensava, e também porque estava há dias quieta em casa, descansando de uma mudança intempestiva de casa. Se tivesse de acontecer, teria acontecido nas semanas cansativas e desgastantes que antecederam a mudança.
Poderia muito bem ser uma mazela muscular, talvez resultado tardio do esforço físico daqueles dias; mas 43 anos não era ainda uma idade provecta e Lisboa não era local para se morrer do coração.
Branca pensava nisto, quando ouviu ao longe o telefone.
- Espero que seja o meu pai. Devia ligar-lhe, saberá com certeza o que devo fazer. Pensou.
Levantou-se sopesando o corpo. O caminhar estava turvo, e fechando os olhos à vez, num exercício que fazia com frequência, encaminhou-se para a porta. Se Branca falasse com o pai, ele saberia o que fazer. Talvez lhe perguntasse o que achava ele de tudo isto, desta sensação de finitude, de que tudo pode acabar num momento. Para sempre. 
O pai de Branca, um senhor alto e de olhos claros, era cardíaco. Há anos que vinha lutando contra um coração de músculo azedo e com um sangue demasiado gordo. Experienciara uma e outra vez a fúria cárdica e o miocárdio estava por um fio. Dor no peito, sensação de enfartamento, e “aquela” dor no braço esquerdo, era para ele tudo família chegada.
Cansada, como se fosse longo o caminho até ao escritório, puxou de uma cadeira e sentou-se. O telefone continuava a tocar. Atendeu.
- Pai! Ia agora mesmo ligar-te.
- Então? Há azar?
- Não. Estava ali a ler sentada no sofá e deu-me uma dor no braço. Assim do nada.
- Mas dói-te mais alguma coisa ou é só o braço?
- Sinto o braço cansado.
- Pois, o braço cansado… então e o peito?
- No peito nada. Estou um pouco nauseada mas como não tinha comido nada… Estava a beber chá.
- Essas coisas… pois, o braço cansado…
- Tenho a mão dormente. Achas que pode ser perigoso?
- Ó, isso! Se tens a mão dormente é porque se interrompeu a circulação. Não estavas apoiada no braço?
- Não, mas tenho uma sensação estranha. Se calhar não é nada. Não sei…
- Não perdes nada em ir ver isso ao hospital. Queres que te leve?
- Talvez vá. Vou ver como me sinto. O braço está aliviando. Ligo-te para te dizer se fui.
- Sim, liga-me. Essas coisas… pois… é um medo que a gente sente...
Pode não ser nada, pensou Branca, mas sair agora de casa com um temporal lá fora era a última coisa que lhe apetecia fazer. Ainda assim, fez um movimento em direção ao quarto, mas desistiu.
Ficou no entanto sem saber o motivo do telefonema do pai, mas agora precisava de se sentar e pensar no que fazer, e depois, com mais tempo, logo pensaria nisso.
Decidiu, só para tirar as teimas, que ver-se ao espelho podia ajudar na decisão de sair para a rua ou, pelo contrário, voltar às leituras. Dirigiu-se para o WC e acendeu a luz. Aproximou então a cara do espelho e deitou a língua de fora, fazendo uma careta. Tudo normal. A boca estava no mesmo sítio e os olhos abriam na mesma amplitude. Lembrou-se da Rute. De manhã ao lavar os dentes, não conseguira agarrar a água dentro da boca. Quando olhou para o espelho, estava com uma paralisia facial. AVC. 34 anos.
Não queria pensar nisso agora. Ainda tinha muito que fazer. Sobretudo tinha a esperança que o novo projecto profissional lhe trouxesse, enfim, sonhos passados. Se a vida era uma justa balança, onde de cada lado pendia o merecimento e o trabalho, então a vida era toda sua.
Ao afastar-se da bancada para voltar à sala, as pernas não obedeceram. O braço cansado e a mão dormente voltaram a dar o ar da sua graça, e sentindo uma dor no peito que se espalhou veloz pelas costas, perdeu subitamente a força e caiu desamparada, aterrando na laje fria. As pernas ficaram torcidas dentro do WC e o resto do corpo, embrulhado num robe de algodão, ficou no corredor que dava para a cozinha.
Nos segundos que se seguiram, Branca experimentou várias sensações.
O medo primário atingiu-a como um torpedo em cheio no coração. Uma ansiedade esquizofrénica fazia galopar as pulsações nas têmporas, e a cadência das golfadas de sangue na jugular, ferviam-lhe no pescoço.
E depois nada. Só a morte.
Branca sentiu uma dor no peito, por aquela dor no braço. A dor no peito não era dor, era desprazer.  Ali deitada e já morta, percebera finalmente a raiz do erro.
Deixou de viver, e isso doía-lhe no peito.
Antes, quando ainda não morrera, já se enterrara. Adiou o prazer, na esperança do prazer futuro.
Naquela tarde de inverno, Branca morreu muitas vezes.
Morreu por todas as coisas que não fez.



Capítulo II
No momento em que o seu coração parou, Branca já estava arrependida.
Se não fosse por este estúpido percalço, amanhã ter-se-ia levantado cedo e vestiria o vestido azul. Tinha pensado em preparar uns ovos mexidos com café, e como sempre, havia de colocar uma fita colorida no cabelo que gostava de usar apertado, apesar toda a gente lhe dizer que devia soltá-lo mais vezes, e talvez, se conseguisse sair a tempo, passasse ainda na tabacaria Lello. Há tempos que andava para comprar uma raspadinha. Se tivesse ficado rica antes de morrer, talvez não tivesse morrido. Os ricos nunca morrem, e quando morrem é por uma casualidade da vida, um azar. Se todos fossem ricos, estava convencida que talvez a vida parasse de acabar tão depressa.
Que parvoíce esta agora, a de morrer.
E o que deixou para fazer no escritório? E o que diriam os outros disto, de ter morrido?
Iriam perceber que afinal sempre deixara coisas a meio, coisas importantes, ou mal feitas. Desfazia-se uma vida de trabalho, assim, só por uma dor no peito que vinha por uma dor no braço.
Divagava agora pela recordação das horas que tinha perdido em arrumações de papelada sem interesse, catalogando, tomando notas, na vaga suposição de que talvez, no futuro, alguém quisesse saber onde estariam as coisas que arrumava proficuamente, e agora que estava morta, que não podia falar, será que alguém saberia encontrá-las? Talvez encontrassem mais rapidamente os papéis do que as notas. Melhor assim, já que também as notas poderiam ter erros, e isso era ainda pior. Que horror, se soubessem dos seus erros o que haveriam de pensar?
E as pessoas que esperavam na manhã seguinte o seu contato? Se não recebessem o seu telefonema, como seguiriam com as suas vidas? Obviamente que não deveria ter deixado tudo para amanhã, pois que o amanhã já não vem, e toda a gente vai reparar que foi um erro dar-lhe a responsabilidade a ela, e assim deixar as vidas dos outros em suspenso, por conta de um telefonema.
Se o presente fosse fácil, não estaria agora focada no futuro.
Viver o agora é tremendamente difícil. Disso não restava qualquer dúvida. Agora que tinha tempo para pensar na vida, ali deitada na laje fria, chegou à conclusão que nunca esteve inteira, nunca foi inteira para as coisas, viveu antes fragmentada entre o passado e o futuro. Se hoje se punha a ler, era certo que se desesperava com o que  tinha ainda para escrever. Se pensava em pintar, já não lhe sobrava tempo para arranjar as flores, e se fosse ver o mar, e adorava ver o mar, perdia a matinée no São Jorge com a Joana, que tanto gosto fazia na sua companhia.
Na verdade, essa estúpida esperança que acalentava, de ainda ter muito tempo para fazer tudo, tinha-lhe tirado a vida.
Adiar tudo não se detendo em nada e sobretudo, deixar-se enganar por um modelo medíocre de perder a vida, ganhando a vida.
Para quê, se morria agora e deixara tudo por fazer.
Ali deitada, Branca não parava de pensar por que razão adiou o prazer. Ah! Se eu fosse rica! E se nunca for rica? E se nunca soltar o cabelo?
Adiamos o prazer de estar vivos? De ter nascido? Porquê?
A vida não se compadece com adiamentos e esperanças. Sabia-o agora da pior forma, e tudo o que deixou de fazer foi um desperdício de tempo.
Fantasiar com o futuro e viver na eterna esperança, não nos concretiza os sonhos formulados no passado, trás sim a ansiedade, e é no fundo uma perda de tempo.


Capítulo III
Ao cabo de 30 minutos de divagações e arrependimentos, Branca chegara a uma conclusão.

Chegara, ainda que prematuramente, a sua hora. Deixaria de desejar e de se inquietar com sonhos e desejos, já que estes foram sempre uma fonte de perturbações que lhe dificultaram o encontro com a felicidade e com a serenidade do espírito.
Por tudo isto, agradeceu à morte. Agradeceu-lhe sobretudo por lhe trazer de volta “o presente” e deixar sair do peito a esperança num futuro inexistente. Conhecer uma sensação de finitude, já que nada mais há depois da morte, faria com que vivesse mais intensamente, ainda que estivesse morta.
A esperança é uma puta gorda, e Branca não esperaria mais nada.
Estava tão absorta nos seus pensamentos que nem reparou numa LUZ que se ia tornando cada vez mais intensa. Afinal é como dizem. Pensou.
-Branca! Branca! Ó meu Deus, estás gelada! Branca, filha!
- Pai? Mas então eu não morri?
- Que disparte! Sentes-te bem? Deixa-me levantar-te. O que te aconteceu?
- Acho que morri. Ainda agora estava morta.
- Tinhas a luz do corredor apagada.
-Acendeste-a? Pensava que era a LUZ.
- Qual luz, Branca? Tu estiveste aqui uns 35 minutos deitada no chão. Foi o tempo que demorei a chegar. Julgava que querias ir ao hospital.
- Ao hospital? Perguntou Branca, agarrando-se à bancada e levantando-se a custo. - Não… deixa-me ver.
Aproximou então a cara do espelho e deitou a língua de fora, fazendo uma careta. Tudo normal. A boca estava no mesmo sítio e os olhos abriam na mesma amplitude.
- Hoje não vou. Talvez amanhã, se o tempo levantar. Gostava muito de ir ver o mar, mas tenho tanto que fazer. Talvez vista o vestido azul e apanhe o cabelo com uma fita colorida.

E se o presente fosse fácil?
Se o presente fosse fácil, Branca não estaria agora focada no futuro.
 “Tu não indagues qual o fim que a mim e a ti os deuses tenham dado, nem recorras aos números babilónicos. Melhor é suportar o que será! Quer Júpiter te haja concedido muitos invernos, quer seja o último o que agora arremessa o mar nas rochas, que sejas sábia, como os vinhos e, no espaço breve, cortes com a longa esperança. Enquanto estamos falando, colhe o dia presente e sê o menos confiante possível no futuro. Carpe Diem.


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