17 de abril de 2014

Há pessoas, coitadinhas, que nem festejaram o dia do beijo...



Dunky, era o rapaz mais esquisito que a Uva conhecia. A Uva e todo um complexo escolar pré-adolescente, onde as hormonas estoiravam como pipocas, e onde a vida dos alunos era tudo menos uma trama cheia de festas de garagem e convívios aos sábados à tarde.
Não. A vida desta escola era um filme sinistro, onde tudo parecia revestido de loucura, de frases cheias de Fuck You´s e I Love You´s, e outras ainda mais duras, que serviam de roupagem às paredes.
Essa escola, esse antro segregador, era um circo onde todos gozavam em surdina com os mais desfavorecidos, os que não ficavam a dever nada à beleza ou que pelos modos estranhos ou elevada inteligência, ou a falta dela, saíam dos parâmetros normais do grupo-mor. A seita era brutal. Retalhava e mastigava a vida, a roupa, e o cabelo, dos outsiders, e às vezes, o comportamento era de tal modo mafioso e cruel, que chegava ao ponto de parecer um bando de mortos vivos, onde uma voraz capacidade destrutiva, que os comia a todos vivos, levava ao suicídio de muitos alunos. Aquela escola era um terror.
Bom, já estou a divagar. Aquilo era uma escola normal, dessas onde todos andámos.
Se não se importam vou retomar a história ali  a partir do primeiro parágrafo.
Desculpem-me este deslize. Devo andar cansada, e quando assim é, dá-me logo para estas coisas macambuzias, sem interesse nenhum...
Dunky, era o típico outsider, tinha uns olhos pequeninos que se escondiam por entre umas sobrancelhas unidas ao meio da testa.
Não, desculpem. Recuso-me a ter uma mono-celha na minha história. Daqui a nada estou a dizer que o rapaz era um ciclope, usava a roupa do avesso e tinha 6 dedos, na testa.
Outra vez. A ver se sai melhor.
Dunky, era um miúdo enorme, daqueles que juntam as pernas acima do joelho e lançam os pés para fora. A cabeça pequena, que se escondia no meio dos ombros parecia desenquadrada do contexto. Os olhos pequenos e encovados davam-lhe um ar carregado e ligeiramente alienado. Nada disto pareceria estranho, já que olhos pequenos há muitos. O problema do miúdo, um vulgar mas desnorteante estrabismo, lançava como aos pés, um olho para bardamerda e outro para infinito. Poderia dizer-se que havia ali uma tentativa do Universo em equilibrar as coisas.
Usava o cabelo curto e espetado, e na nuca rapada, deixava apenas crescer uma estranha melena loira, oxigenada, que esticava continuamente com os dedos pequenos e sapudos.
Credo! Uma melena loira? Onde é que eu fui agora buscar isto???
Dunky usava o cabelo comprido, apanhado na nuca com um elástico de oficina. O cabelo chegava-lhe ao meio das costas, e não fosse a mãe a cortá-lo com a tesoura das unhas, sorrateira, às escuras, durante a noite, e a crina crespa havia de crescer até se lhe enrolar os atacadores das alpercatas.
Havia nele qualquer coisa de sinistro, como se houvesse algo que mantinha em segredo. Nunca se juntava aos demais, preferindo cirandar pela escola, sozinho, numa mudez desconcertante. Por detrás dos óculos escuros, que usava mesmo de noite, perscrutava o recreio, na sombra, dando a ligeira impressão que programava um crime, que a qualquer momento mataria alguém.
No entanto, apesar deste tipo andrajoso, o rapaz tinha qualidades escolares impressionantes. Não fosse o seu admirável raciocínio e perspicácia, e nem os professores davam conta da sua presença. Era um brilhante aluno, talvez o melhor de todos,  e isso notava-se sobretudo no resultado dos testes e na impecável apresentação dos seus trabalhos.
Não. Isto assim não tem graça.
Dunky era burro que nem um calhau! Patinava há 3 anos no 8º ano, e há muito que a mãe tinha desistido do apoio escolar, que de nada adiantava. Gastara milhões em psicólogos e explicadores, mas o miúdo não evoluía. Tentara até arranjar-lhe um trabalho, e tinha chegado à fala com alguns potenciais empregadores lá do bairro, mas o rapaz na hora de conhecer o chefe sumia-se, e nos dias seguintes ninguém o via, reaparecendo depois num estado catatónico de alucinações e desvarios, sobretudo por causa da fome. 
Na escola, nunca se aproximava de ninguém, muito menos dela, a sua musa Uva inspiradora. Uva sabia que este estranho rapaz a observava e seguia, e isso assustava-a. A seita dizia que o melhor era limparem-lhe o sebo, a a Uva percebia que se lhe limpassem o sebo, o rapas era capaz de se desequilibrar...
Um dia, só para o irritar, perguntara-lhe se era poeta.
- Ouve lá ó Dunky, tu agora andas armado em poeta, é? Mostra lá isso aqui ao pessoal, vá lá.
O rapaz baixara a cabeça e em passos apressados sumira-se por detrás do pavilhão de ciências.
Poeta! O miúdo escrevia uns versos no caderno, e na realidade eram inspirados e profundos. Eram mesmo de grande beleza.
O rapaz estava apaixonado.
Uva era o objeto da sua paixão, da sua perdição. Andava há meses congeminando uma forma de se aproximar dela, sem ser percebido, só para a beijar, nem que fosse um beijo fugaz e único.
Pensava repetidamente na forma como poderia fazê-lo e um dia, quando finalmente tomou coragem, decidiu-se.
Ela estava no corredor do pátio, conversando no meio de um grupo animado de raparigas, distraída.
Com as pernas a tremer, aproximou-se por trás, sem respirar, e quando o seu corpo já quase tocava no dela, deu-lhe um toque ligeiro no ombro e ela voltou-se, ficando cara a cara com ele.
Todo o seu corpo estremeceu e ouve um segundo mágico que ficou no ar, como se o tempo parasse e nada se ouvisse.
De repente um grito ao longe.
Um movimento brusco à retaguarda de todo o grupo que os rodeava, fez a magia desaparecer, e vinda não se sabe de onde e a toda a velocidade, uma bola veio bater-lhe em cheio na cabeça.
O embate provocou-lhe um grito feroz e uma imensa baforada fétida soltou-se da sua boca.
O grupo sentindo o cheiro nauseabundo, afastou-se rapidamente e a Uva matou finalmente a sua curiosidade.
Halitose.
Dunky, não festejou o dia do beijo...

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