28 de abril de 2015

No fim da linha

Ainda dizem que é mau crescer no subúrbio.
Para algumas coisas é, ainda é, que eu bem sei a canseira que dá explicar que o sitio onde cresci não é esse, é o outro, o tal que tem o mesmo nome mas sem Santa nenhuma; antes tivesse, talvez o mal tenha sido esse, a total ausência de santos e anjos, só demónios e diabos enfiados nas cabeças e nos bolsos das calças.
O bairro foi o meu osso mais duro de roer, mas ensinou-me bem onde procurar o tutano da vida.
E quando apareceu o cavalo, a trote de uma crise que fez desaparecer estrategicamente a ganza para a introdução de uma nova merda no mercado, foi o subúrbio que deu o peito às balas.
Como se fosse um tubo de ensaio, um ninho de passarinhos abandonados, com os biquinhos muito abertos.  
E foram essas balas que nos mataram os amigos, tantos amigos, e que ainda hoje matam, para mal de muitos dos nossos passados e unânimes pecados, pecados de merda, bocados de merda, pecados de curiosidade imortal, balas cobardes, balas perdidas, reminiscentes, decadentes, que acertam em peitos abertos de qualquer um que ainda se ponha à janela, mesmo que protegido pelas grades.

A merda passou toda pelo bairro.
Vi passar o cavalo a correr, e os meninos a aprender, vi passar a hit girl branca como a neve, arrastando 7 mil anões, e outros tantos gigantes, vi passar elegantes e discretos Panoramix, ácidos irónicos, catatónicos, que agora matam os piolhos à criançada, e depois sempre a subir, com a droga do amor, as pastilhas só para o corpo, as pastilhas só para a mente, o pequeno Dinetel para ajudar na matemática, o Popers para relaxar os músculos, e o Serenal para acalmar todos os ânimos, ou para palmar uns capacetes, que a malta era tudo filho de gente muito pobre.
De tempo.

A ketamina veio já no fim da linha, e esta é uma boa expressão.
O bairro, atolado em merda até ao pescoço, enterrava mortos, estava moribundo, mas ainda mexia.
Muito antes desta alarmante notícia de pessoas a consumir doses para cavalo, já o subúrbio curtia trips de ketamina e experiências fora do corpo.
E ainda dizem que é mau crescer no subúrbio.
Para algumas coisas é, ainda é, que eu bem sei a canseira que me dá explicar porque raio percebo eu de tanta merda.
Mas por outro lado, qualquer garotinho do meu bairro sabe: ketamina? Só mesmo no fim da linha.

11 comentários:

  1. Sim mas os oito reclusos cresceram, muito provavelmente, em bairros como o teu, não na avenida de Roma.

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    1. Agora fizeste-me rir!
      Avenida de Roma? Mas na Avenida de Roma não havia merda? Dinheiro passou a ser sinal de bom comportamento e decência social desde quanto? Quanto mais dinheiro tinham mais na merda se metiam.
      Se a merda vinha toda de Lisboa para o subúrbio. Da cidade para a periferia, do aeroporto para a cidade. O Casal Ventoso, ring a bell? O Bairro Alto ring a bell? Serafina, Liberdade, Intendente, Liberdade, Moniz, Alameda, Roma?
      Meninos betos atolados na merda até ao pescoço vi eu às centenas, em clínicas de desintoxicação que os pais pagavam às escondidas da família. Primeiro o Le Patriarche, segunda casa de muitos betinhos da 1ª geração, depois, bom depois foi o que se viu.
      A merda correu o bairro todo, Lisboa inteira, o país inteiro, não foi só o subúrbio.
      No meu subúrbio o que correu foi a devastação de fim da linha chamada ketamina.
      Por isso é que eu digo, nenhum daqueles reclusos era do meu bairro, porque se fosse, era porque tinha perdido a memória daqueles tempos.

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  2. A merda atola qualquer um, basta que se deixem meter nela.

    Beijos, Uvinha. :)

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  3. o subúrbio como mestre e telhado? tudo ao mesmo tempo?

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    1. É verdade.
      O subúrbio foi mestre e telhado.
      Também foi mauzão, peste, sabichão, belicoso, buriloso. Mas aprende-se muito.

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  4. A merda anda por todo o lado. Se no subúrbio anda às claras, nos outros sítios também anda mas camuflada. Basta querer encontrá-la.

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