3 de fevereiro de 2016

Lina

Quando eu nasci, os meus pais alugavam por dois contos e setecentos uma cave com quintal num prédio cheio de casais novos.
Todos os casais que lá moravam tinham filhos, e à exceção do Alexandre e do Leandro, os últimos a nascer, eu era a miúda mais velha e a miúda mais nova do condomínio, isto é, eu era a única rapariga nascida no meio de onze rapazes.
Esta pequena-grande particularidade teve consequências várias na minha infância.
Por ser a única miúda do prédio, franzina mas muito machorra, habituei-me às brincadeiras masculinas e acalentei durante muitos anos uma espécie de raiveta mal contida às brincadeiras das miúdas.
Por isso é que, quando aos sete anos me ofereceram a primeira boneca, a Lina, eu a despedacei com a tesoura do jardim, cortando-lhe irremediavelmente os cabelos, os dedos das mãos e depois, como quem lava a alma, as duas pernas.
Não sei onde jazem os despojos de tão maltratada boneca, mas asseguro que mesmo enterrada no quintal, à mercê da implacável erosão dos solos, está mais segura agora do que nas minhas mãos pequeninas.
Ontem, quando liguei para a Dierre, para dar conta que uma porta ultra-mega-blindada tinha ficado desalinhada depois de uma tentativa de assalto, atendeu-me uma Lina encrespada, e eu fui tão longe quanto isto: contei-lhe a história-falsa da boneca da minha infância dizendo-lhe que era a minha preferida, e fazendo o truque da simpatia-sentimental, o grande trunfo das super-secretárias, alinhei uma data da minha preferência para a resolução do meu problema.

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